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Organizações de direitos humanos alertam para o perigo do tratado da ONU sobre cibercrimes, correndo o risco de alargar o poder de vigilância dos governos
30/08/2023
Organizações de direitos humanos estão a alertar para os perigos do tratado da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o combate ao cibercrime, que está em negociações finais esta semana, em Nova Iorque, podendo vir a expandir o poder de vigilância dos governos e oferecer às ditaduras mais ferramentas de repressão. Neste sentido, os representantes das organizações Human Rights Watch, Electronic Frontier Foundation, Access Now, Kenya ICT Action Network, Article 19 e Privacy International realizaram uma conferência de imprensa para levantar as questões que consideram preocupantes com o atual projeto, como a salvaguarda dos direitos humanos, a expansão de poder de vigilância dos governos, a ameaça à privacidade e a liberdade online. Deborah Brown, senior researcher da Human Rights Watch, aponta que a falta de consenso sobre o objetivo do tratado é uma das principais questões. “Quando a Assembleia Geral das Nações Unidas decidiu avançar com a elaboração deste tratado em 2019, não havia consenso internacional de que este tratado era necessário ou mesmo a que propósito serviria. Quatro anos depois, ainda não temos clareza sobre o âmbito do tratado, ou mesmo uma definição do que é o crime cibernético”, afirma Brown. “Será que isto realmente pretende representar ou abordar um conjunto restrito de questões e um conjunto restrito de crimes onde as redes de comunicação são parte integrante da sua prática? Ou pretende abordar qualquer crime que inclua tecnologia?”. Vários oradores presentes afirmaram que a falta de linguagem sobre os direitos humanos no projeto do tratado é preocupante, sublinhando ainda que muitos países procuram utilizá-lo como veículo para as questões que consideram mais importantes. Em janeiro, a delegação chinesa propôs uma redefinição de cibercrime para incluir “divulgação de informações falsas” online, enquanto os diplomatas do Paquistão e do Irão querem que os insultos religiosos sejam considerados como um crime cibernético. Um porta-voz do Departamento de Estado dos EUA disse ao Recorded Future News que estão otimistas de que as negociações estão “no caminho para um tratado baseado em consenso que ajudará os países a combater o flagelo do cibercrime”. No entanto, acrescenta que a cibersegurança, a governação da Internet, o terrorismo e a criminalização do discurso não estão incluídas no projeto e não devem ser deixadas de fora por completo. Esta sessão de negociações – a sexta até agora – envolve negociações linha por linha sobre o rascunho do tratado. Os EUA, disse o porta-voz, planeiam opor-se a propostas amplas ou ambíguas e pressionar por “resultados práticos”, como: estatutos criminais específicos para os principais cibercrimes; garantias de que a convenção terá a autorização legal nacional apropriada para preservar, reunir e partilhar evidências eletrónicas; e a promoção da cooperação internacional, bem como iniciativas eficazes de capacitação e assistência técnica. Victor Kapiyo, advogado e defensor dos direitos humanos da Kenya ICT Action Network, considera que o tratado oferece um número limitado de salvaguardas de direitos humanos e que deveria incluir um capítulo próprio com os “princípios, condições e salvaguardas claros, elaborados, abrangentes e robustos, alinhados com os padrões internacionais de direitos humanos”. Outras questões criticadas por Kapiyo são a falta de controlo na colaboração transfronteiriça entre governos, não existindo regras regulatórias para a recolha de dados pessoais, e particularmente o Artigo 23.º, que alargaria o âmbito dos poderes de vigilância dos governos. “O âmbito deve ser limitado a investigações criminais e crimes específicos”, afirma o advogado. “A convenção não deve ser um tratado global de partilha de provas ou um veículo para investigação de qualquer crime no planeta simplesmente porque as tecnologias de informação e comunicação (TIC) estão envolvidas”. Também Katitza Rodriguez, diretora de políticas de privacidade global da Electronic Frontier Foundation (EFF), alerta que o tratado vai para além do crime cibernético, sendo que vários artigos ampliam os poderes de espionagem interna dos governos para investigar “praticamente qualquer crime com salvaguardas mínimas”. Segundo Rodriguez, os países com proteções de dados limitadas correm o risco de serem explorados por outras nações para espionagem. Com o projeto atual, os Estados podem interceptar comunicações, bem como fazer o rastreio de metadados em tempo real. Desta forma, a EFF apela à criação de normas mínimas de proteção de dados e à autorização judicial prévia para qualquer investigação, rastreio ou recolha de dados. Raman Jit Singh Chima, por sua vez, destaca a ameaça ao trabalho dos investigadores de segurança cibernética e dos hackers éticos, devido às restrições impostas na investigação de vulnerabilidades, como a necessidade de uma “autorização prévia” às empresas para investigar bugs, sendo que apenas assim receberiam proteção legal. Para Carey Shenkman, advogada de direitos humanos da Article 19, a imprecisão das regras no tratado pode permitir a criminalização de diversos conteúdos pela parte dos governos, como a censura de conteúdo LGBT online ou até de obras populares como “A Guerra dos Tronos”, através do Artigo 13.º, que criminaliza o material escrito sobre danos a crianças. As negociações atuais decorrem até sexta-feira, dia 1 de setembro. Após a elaboração do texto final, os Estados-membros irão reunir-se novamente em janeiro de 2024 para a votação do tratado na Assembleia Geral. No entanto, existem ainda várias divergências entre os países. Segundo Chima, a CARICOM, a Rússia, a China e a Índia apoiam um tratado mais amplo, mas a União Europeia e outros países preferem um texto mais limitado. Estados como o Vietname querem remover totalmente a linguagem de direitos humanos, enquanto o Uruguai e a Austrália visam reforçá-la. A China e outros tentaram limitar as secções sobre os direitos humanos a países que ratificaram tratados separados, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Brown adverte ainda que o tratado poderia fortalecer as ameaças de governos a empresas de tecnologia com a perspetiva de encerramentos, bloqueios ou restrições para obter informações ou remover determinados conteúdos. Katitza Rodriguez da EFF considera que o estado atual do projeto não é aceitável. “Se o tratado for aceite na sua forma atual, com poderes de vigilância alargados e sem salvaguardas humanas robustas, não deverá ser aprovado de todo”, afirma. A Human Rights Watch, por sua vez, alerta que o tratado pode fazer mais mal do que bem. “O pior cenário é que este tratado não apenas legitima o atual comportamento abusivo por parte dos governos que já estamos a ver, mas também expande essas práticas a países que ainda não possuem leis sobre crimes cibernéticos”, defende Brown. “A perspetiva de um tratado global sobre crimes cibernéticos redigido de forma vaga seria desastrosa para os direitos humanos”. |